segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A Atriz




Tantas faces para um só rosto
Por vezes, insiste em exibir sobrancelhas grossas,
Em outras ocasiões prefere-as finas,
Bem encorpadas
Tudo para alimentar um olhar
Que pode render até o mais cínico dos seres

Tantos Eus em apenas um corpo
Inúmeras peles cobrindo o mesmo rosto
Cada epitélio uma realidade transformada em ficção
Tu és a mais bela e mais horrenda de todas as criaturas que já vi

Duplicidade
Ambigüidades que te fazem esquecer quem és
O nome impresso na certidão,
Já não mais reconheces,
Letras garrafais em papéis marcados pelo tempo
Símbolos que não descrevem mais aquele rosto de tantas fisionomias

Nem o vestido vermelho,
Nem a peruca,
Muito menos a pintura ostentada nos lábios
Podem disfarçar em minha mente quem certa vez foi

O que você foi
E o que nunca virá a ser
Tudo guardado apenas no porão de minhas lembranças

Neste quarto escuro,
O teu Eu fica disposto
E empoeirado, espera um dia ser vestido novamente por ti

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A perda da luz


Desapareci.
Evaporei da vida que foi escolhida para mim.
Evadi da realidade que me enchia de angustia e medo de nunca ter vivido.

O teu corpo disposto para todos verem e tocarem.
A imagem de tuas mãos imóveis
E a ausência do som da tua respiração
Estupraram a minha alma.

A violência brotou dos meus próprios poros.
Convulsão tomou conta do meu corpo.
Não estava mais acostumada a viver sem você.
Sua simples presença era como uma brisa de ar em uma época de cinzas e clausura.
Teu toque despertava sorrisos mesmo quando eu me recusava a ser feliz.

Fiquei caída ao teu lado,
Sem controle sob meus ossos, músculos e articulações nervosas.
A multidão tenta retomar o domínio que para mim foi impossível de ser alcançado.
Só quem contempla, imóvel, este show de horrores
É o que resta de ti.

Deitada naquele esquife de madeira,
Com cabelos penteados,
E vestindo as roupas que sempre odiou,
Você agora se resume a algo que era.

Mas eu sei que só você entenderia tal sofrimento.
Apenas você sentiria pesar por atos de loucura tão desnudos, como os meus.

Os outros nada sentem.
Só têm espaço para a vergonha de emoções dissimuladas.
Eles nunca compreenderam a virtude em nossa união.
Duvido que tenham sequer saboreado o amor.

Um amor como o nosso,
Que mesmo contigo morando a sete palmos da terra,
Ainda vive próspero, em tudo.

Eles condenam o que não conhecem,
Repudiam tudo o que para nós era essencial.
As velas que ostentávamos,
Eles já cuidaram de apagar.

A luz, que antes emanava da tua pele, se foi.
Ainda consigo ver relances de clareza em sonhos,
E em delírios causados pelo que empurram em minhas veias.
Daqui deste quarto,
Em plena prisão para os que também perderam a lucidez,
Espero algum dia te reencontrar.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A Fuga de Cléo e Daniel


Ela nunca precisou de ninguém.
A solidão era o que mais a completava desde criança.
A casa de bonecas nunca tinha espaço para outros personagens,
A vida que era obrigada a viver parecia uma procura infinita em um mundo vazio e aterrador.

Tudo fazia sentido para a moça que cabia perfeitamente em abraços.
Tantos abraços.
Mas nenhum despertava o sentimental e os mais belos desejos suicidas de quem ama demais.

Até abraçar Daniel naquela praça só conseguia se reconhecer em si mesma.
Cabelos longos e claros, olhar aflito.
Agora, o outro se tornou o reflexo de como a vida poderia ser.
Nada mais era tristeza,
Nunca mais futilidades.
Só havia espaço para o encantamento.

Aquele rapaz trazia a combinação perfeita de tudo o que nunca sentira.
Pequenos gestos de amor nas ruas pareciam afrontar a quem nunca vivenciou a verdadeira liberdade presente no sentir.
Em cada beijo,
Em cada orgasmo,
Em cada agrado nos cabelos ruivos de Daniel,
Ela se afastava mais do nosso mundo e chegava mais perto da serenidade.

Santificadas sejam essas crianças.
Infantes Terribles.
Marginais que abandonaram o gueto de condutas morais hipócritas,
Para intensamente viver a paz. ______________________________________________________

* Este poema foi inspirado no livro Cléo e Daniel, de Roberto Freire.